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Minha pesquisa

Ouvir alguém falar sobre seu tema de mestrado no geral pode ser um papo bem chato e inconveniente, mas tentar produzir conhecimento válido e útil por meio de um projeto de design (zero interesse em discutir o que isso significa nesse momento) meio que também é. E me parece que manter um diário de algum tipo pode ser uma boa maneira de dar sentido pra esse processo confuso e errático — além de uma boa oportunidade de juntar meu delírio nostálgico com a web das antigas com meu outro delírio do momento (a pós-graduação). Além disso, isso aqui é literalmente o meu site, então se você seguir em frente presumo que tenha algum interesse em ler. Aviso dado.

Projetar e pensar

Desenvolvendo minha pesquisa dentro de um programa de natureza teórica-prática — como é o PPGD da Escola de Belas Artes da UFRJ — estou procurando um caminho pra realizar uma investigação que tenha o gesto projetual característico do design (no qual não sou especialmente bom) como fio condutor de reflexões teóricas. No campo do design esse método pode aparecer com o nome de Research Through Design1 ou Design Science Research2 (guardadas algumas diferenças importantes entre os dois termos).

Tem bastante literatura sobre o assunto e um contingente de pesquisadores tentando traçar linhas gerais do método e pontos em comum entre as várias pesquisas realizadas dentro desse guarda-chuva. A conclusão até agora, me parece ser de que é muito mais fácil imaginar isso teoricamente do que identificar na prática — sobretudo se tratando de um campo múltiplo e viscoso como o design. E esse é um dos abacaxis que quero tentar descascar por aqui.

Estou pesquisando as estratégias de representação da crise climática por meio da visualização de dados. É um tema por si só bastante amplo e que pode ser abordado por vários ângulos diferentes. Pode-se analisar as formas gráficas usadas para representar esse fenômeno em gráficos noticiosos, ou traçar um panorama dos tipos de dados mais comumente visualizados em peças de comunicação sobre a crise, ou projetar novas codificações de gráficos que deem conta desse tipo de fenômeno. Tem muito a se fazer.

Deficiências de imaginação

Esse interesse surgiu pra mim depois de ler The Great Derangement do Amitav Ghosh e ficar encucado com o que ele chama de algo como uma “deficiência narrativa” da qual padecemos quando se trata de imaginar cenários catastróficos — que é o que se faz em 23 das 24 horas dos dias na internet. Sendo um autor que vem da literatura, o interesse dele repousa sobretudo em como a ficção retrata esse tipo de ameaça. Parece um contrassenso — ou um delírio, um desarranjo — que estejamos diante de basicamente o fim de todos os modos de vida vigentes até então na nossa experiência humana no mundo e que esse problema esteja praticamente ausente da nossa ficção e imaginação coletivas:

Capa da edição em inglês de The Great Derangement

“[…] O Antropoceno representa um desafio não apenas para as artes e humanidades, mas também para nosso senso comum e, além disso, para a cultura contemporânea no geral. Não resta dúvida, evidentemente, que esse desafio surge em parte das complexidades da linguagem técnica que serve como nossa principal janela para a mudança climática. […] Creio que identificar como isso se dá é uma tarefa de máxima urgência: pode muito bem ser a chave para compreender por que a cultura contemporânea encontra tanta dificuldade em lidar com a mudança climática. De fato, essa pode ser a questão mais importante a já confrontar a cultura em um sentido mais amplo — pois não nos enganemos: a crise do clima é também uma crise de cultura e, portanto, uma crise da imaginação3

Me chamou atenção o papel da linguagem técnica levantado por ele, principalmente por se tratar de um dos insumos principais da visualização de dados dentro da divulgação científica. De repente, esse problema parece ter ainda mais a ver com o nosso trabalho diário enquanto designers do que antes.

Tenho imaginado desde então como a visualização poderia ajudar a suprir essa deficiência — não só por se tratar do meu metiê, mas precisamente pelo fato de a visualização ser notoriamente vista (sem razão, acredito) como uma voz de autoridade quando se trata de comunicar fatos rígidos. Onde fica toda essa autoridade quando falamos de fatos inimagináveis como o próprio fim de virtualmente todos nossos modos de vida4 ? A rigidez do fato basta para comunicar o indesejado e o impensável?

Data Non-Humanism

Um dos paradigmas que à essa altura já se estabeleceu (ou já poderia ter se estabelecido) como norma dentro do campo da visualização de dados é o Data Humanism (ou humanismo de dados), proposto pela Giorgia Lupi como uma guinada no papel semântico que a própria ideia de dado desempenha junto ao conhecimento e à comunicação.

A ideia aqui é inverter justamente o papel de autoridade do dado que frequentemente é tomado por valor de face, e reinserir o elemento demasiadamente falível e humano nessa conta. Dado não como um monolito impenetrável e descritivo de fatos rígidos mas como (pasme) um produto humano aberto e possivelmente subjetivo.

A imagem que todo mundo já cansou de ver: o manifesto do Data Humanism de Giorgia Lupi

Qualquer perspectiva que desafie a autoridade do dado como pedra de toque inquestionável do conhecimento e da razão é bem-vinda, acredito eu. Mas, me questiono o quanto a perspectiva humana como eixo principal de construção de ideias e reflexões é realmente útil para nos ajudar diante daquilo que sequer gostamos de imaginar.

Na antropologia são vários os autores 5 que têm buscado entender como dar conta ontologicamente de uma perspectiva não-humana (em tudo que isso possa significar). O Feral Atlas de Anna Tsing, por exemplo, pra todos os efeitos é um artefato de design que te convida a explorar os emaranhamentos em que entes não-humanos estão envolvidos em conjunto conosco — e tem como ponto focal não o ponto de vista humano, mas as próprias relações de causa e efeito que são subprodutos desses encontros interespecíficos.

Se estamos tratando de relações ecológicas mensuráveis e compreensíveis, como imaginar um dado que dê conta dessas relações? É possível avançar e imaginar uma representação de dados não-humanista (não confundir com anti-humanista)?

O Feral Atlas da Anna Tsing

Claro que não me arrisco a trazer respostas a qualquer um desses questionamentos, mas sinto que no tamanho do buraco em que nos metemos é quase uma obrigação que apontemos todos nossos recursos (teóricos, práticos, teórico-práticos) para a questão e que quem se acostumou a falar uma voz de autoridade aprenda também a usá-la pra dizer aquilo que nos recusamos a escutar.


  1. GODIN, Danny; ZAHEDI, Mithra. Aspects of Research through Design. 2014.↩︎

  2. DRESCH, A. et al. Design science research: método de pesquisa para avanço da ciência etecnologia. 2015.↩︎

  3. GHOSH, Amitav. The Great Derangement. Climate Change and the Unthinkable. Chicago: University of Chicago Press, 2016.↩︎

  4. Empresto bastante na minha pesquisa o conceito de hiperobjeto definido pelo Timothy Morton como uma forma de delimitar os limites desses fenômenos indelimitáveis, mas acho que isso vale um post à parte depois.↩︎

  5. Donna Haraway, Bruno Latour, essa gente toda que revira ontologicamente.↩︎

Publicado em 28/2/2021




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