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Toda prática de visualização é situada no Antropoceno

A essa altura objeto de consenso e temor, a mudança climática se apresenta como potencialmente o maior desafio da história humana recente, pondo em cheque a perspectiva de futuro de gerações vindouras e contemporâneas. No contexto do Antropoceno, as ideias de alguns teóricos parecem sugerir que a própria imaginação de futuros pode estar comprometida. O escritor Amitav Ghosh (20161) cita as dificuldades de se preparar cognitivamente para o que está por vir como o que chama de um “grande delírio” ou um “grande desarranjo” vivido em escala global; o filósofo Timothy Morton (20132) conceitua “hiperobjetos” para descrever fenômenos tão grandes em escala que desafiam a capacidade cognitiva humana; enquanto o antropólogo Arjun Appadurai (20133) advoga pela necessidade de encarar o futuro como “fato cultural”, diante da ampla gama de afetos que o atravessam.

O consenso ao redor da emergência climática se forma primariamente com base na pesquisa científica e na capacidade de aferição e modelização da realidade. Temperaturas de oceanos, taxas de extinções, emissões de carbono: todos esses indicadores que sinalizam a Grande Aceleração são, em última instância, dados. No campo do design, uma das disciplinas mais frequentemente evocadas para fazer interface a esse tipo de informação é a visualização de dados. Que tipo de conhecimentos ela proporciona sobre o futuro?

Já estabelecida em meios como o jornalismo, a divulgação científica e o mercado financeiro, a visualização tem diversas convenções e protocolos próprios – dependendo até do chamado “letramento de dados”, o aprendizado inicial de seus conceitos, para se efetivar. As origens da visualização são comumente identificadas em práticas coloniais europeias de mapeamento de territórios e contagem de recursos, e alguns de seus principais teóricos, como Tufte, fundamentam seu pensamento em disciplinas técnicas como engenharia e estatística, tirando delas insumos para suas práticas de design.

Em Data Feminism, as teóricas D’Ignazio e Klein (20204), descrevem as epistemologias fundantes da disciplina mobilizando a ideia de “truque de deus”, de Donna Haraway (19955) que descreve um olhar superior descorporificado que proporciona ao sujeito “ver tudo de lugar nenhum”. As autoras alertam para a necessidade de situar o conhecimento proporcionado pela visualização, deslocando o ponto de vista desse sujeito imaginado para as perspectivas reias e situadas de grupos usualmente excluídos da formação de conhecimento. Com isso, pode-se engendrar uma nova cadeia de sentido que afeta os próprios artefatos de design na visualização, distanciando-os de uma pretendida neutralidade refletida no minimalismo visual e abrindo caminhos para formas que desafiam convenções e se apoiam em outras vias de comunicação, como a “visceralização de dados”.

À luz do exposto, me pergunto o quanto a visualização de dados climáticos – que, necessariamente, é também uma visualização de futuros – necessita, igualmente, do reconhecimento do Antropoceno como um fenômeno que inevitavelmente situa a todos (em maior ou menor escala de acordo com uma gama de desigualdades). Diante de métricas e dados desoladores que extirpam o futuro da espécie, não há como se falar em um olhar exterior ou descorporificado, ou de um futuro puramente teórico ou imaginado. Há que se reconhecer o futuro como “atravessado por afetos” (Appadurai, 2013) e abraçar incertezas inerentes ao nosso ponto de vista histórico, entendendo e fazendo uso do potencial da visualização e do design de “afetar o futuro ao fazer afirmações sobre ele” (Rettberg, 20206).

Só pensando alto aqui, nada de novo.


  1. GHOSH, Amitav. The Great Derangement. Climate Change and the Unthinkable. Chicago: University of Chicago Press, 2016.↩︎

  2. MORTON, Timopthy. Hyperobjects: Philosophy and ecology after the end of the world. University of Minnesota Press, 2013.↩︎

  3. APPADURAI, Arjun. The future as cultural fact. Essays on the global condition. London and New York: Verso, 2013.↩︎

  4. D’IGNAZIO, C.; KLEIN, L. F. (2020). Data feminism. The MIT Press.↩︎

  5. HARAWAY, Donna. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. In: Cadernos Pagu, (05), 1995, p. 07-41.↩︎

  6. RETTBERG, J. Ways of knowing with data visualizations. In: KENNEDY, H.; ENGEBRETSEN, M. Data Visualization in Society. Amsterdam University Press B.V., Amsterdam 2020.↩︎

Publicado em 24/1/2022